19 de maio de 2015

Câncer

Da série: [se você pudesse me ler]
(isso é só uma coisa que eu queria dizer, como tantas outras que os outros dizem, se você pudesse me ler...).
Como eu ia dizendo, o câncer rouba muita coisa da gente, mas eu também sou trapaceira. Bom, eu acredito que ter qualquer doença não seja fácil, já tive resfriados em que não aguentei sair da cama, quem nunca? E sempre que ficamos doentes, bem, existe uma norma de conduta, se não sabe o que dizer, é simples, não diga nada, aos que sabem, meu “muito obrigada”. Desde meu diagnóstico eu passei por muitas fases... É difícil enumerar por ordem o que o câncer fez comigo, então vou mencionar o que em mim teve mais impacto. Minha primeira pior experiência foi o dia do primeiro diagnóstico, quando me disseram que era só um cisto, quisto, seja lá o que fosse, eu pensei, “a mensagem que meu corpo está me passando é de algo mais grave, alguém, por favor?”. Me vi em pouco sem saída. No dia meu pai ficou tão feliz que resolvemos sair pra comemorar, só um caroço pra ser retirado com uma cirurgia. Mas eu não me convenci, eu sabia que não era só aquilo. Guardei aquilo pra mim. Então o cirurgião me transferiu pra uma hematologista, (dois santos na terra). Logo depois veio a biópsia, não consigo me lembrar na minha vida, de um dia que tenha sido tão longo e cansativo como aquele, lembro-me de ter chorado muito, lembro-me de não ter forças se quer pra andar, lembro-me de três mãos apertando as minhas, a primeira da minha médica, que disse: “Ju, nós não vamos desistir, vou conseguir sua biopsia pra hoje ainda, nem que eu precise arrumar outro médico!”. A segunda mão foi a do médico que ela “improvisou”, ele segurou minhas mãos com as duas dele e disse que tudo correria bem. A terceira mão foi a do médico que ela tinha conversado pra fazer minha biopsia, ele tinha ficado preso na serra por causa de um acidente, ele pegou minhas mãos e disse: “Vamos lá!”. Durante certo tempo o câncer me roubou a cor, eu era apenas branca como uma folha de papel, e frágil, e ficar acordada durante uma cirurgia e saber que estão tirando uma parte sua pra te dar uma má notícia, não é legal. Hoje eu olho a cicatriz na axila, e admito, me incomoda, assim como as outras cicatrizes, a da biópsia da medula que é diferente da cicatriz da axila, é só um ponto na minha lombar, ela me incomoda, é minha lembrança de superação. Marcas de superação. Tem dias que eu preciso muito chorar. O câncer me roubou a autonomia. Sabe, eu montei toda minha casinha dos sonhos, morar sozinha é um barato! Andar de meias pela casa é um hobby pra mim, entre outras coisas que fazemos quando estamos no nosso lar e nenhum um outro lar é melhor que o seu, pois ele pertence a você. Aquele era meu lar, o lugar onde eu finquei as raízes da Juliane. Atingi o auge máximo que uma pessoa solteira ambiciona na sua autonomia, parei de lavar as roupas na lavanderia e finalmente comprei minha própria máquina de lavar; 8kg, com economia de água, chupa essa manga! A máquina só faltava falar! Mas como essa seria uma boa história de superação se eu não tivesse o amor incomensurável da minha família? Pusemos tudo num caminhão e lá se foi minha máquina pro sótão da casa da minha avó. Sonhos em conserva e devidamente empacotados, estes ficaram pra depois. A biópsia da medula. Putz, aquilo foi doloroso. Ficar na posição fetal sem ser um feto, e sabendo que vão usar uma agulha e o caramba pra pegar um pedaço do seu osso, não é legal. Eu estou magra, 10kg pra quem já era magra fazem muita falta, ossos quando batem, doem hahhaha, o caso é que não achavam o meu osso! Eu não gosto nem de lembrar, no lugar de dois furos, me fizeram cinco. E a anestesia? Não me lembro dela ter feito muito efeito. De um a dez, a escala da minha dor foi 9.9, o dez eu guardei pras inúmeras vezes em que ainda vão furar meus braços com agulhas. Quando eu olhei pro médico lindo que fez a biópsia de medula, eu estava chorando copiosamente, tive a impressão que ele queria me pedir desculpas. Ele era lindo mesmo, moreno, nem tanto, barba por fazer, nem tanto, alto, voz de locutor de rádio, (meu número kkk), eu chorando de dor, me senti estúpida, não por ele ser lindo, mas por eu sentir dor. Nunca esperamos que na vida, certa dor nos está de certa forma, de algum modo, em algum momento, predestinada. É disso que eu me lembro de quando ao longo que desses meses encontrei várias pessoas no meu caminho, umas realmente me apoiando, outras apenas curiosas, umas outras educadas, umas poucas sem palavras, e bem... Algumas, realmente idiotas. Ouvi certa vez o seguinte: “Essa doença é um pecado que você cometeu. Peça perdão pra Deus que ele te cura”. Outra: “doenças como a sua são as mágoas que você tem guardadas, você precisa liberar perdão”. Como uma pessoa sensata lida com isso? De maneira sensata, eu suponho. Mas como eu não tenho mais nada a perder e sou uma sensata com requintes de lunática, e não me levem a mal, eu não esperei as frases serem terminadas, eu virei as costas literalmente, por que eu sou muito capaz disso e fui viver, eu sou desapegada demais as vezes. Já me taxaram de fria, mas sou pragmática. Pra que discutir com alguém que não nos conhece? No final, acaba sendo sensato, que sejam felizes com suas filosofias, a minha é, Deus não tem nada a ver com isso, meu corpo de defeito, deu zica mesmo sabe, a medicina explica, estamos tratando, se Deus quiser fazer algo através disso, não se preocupem, eu não estou preocupada, ele é o dono da casa. Então, onde estávamos? Sim, ter um câncer nível, estágio, fase  QUATRO (4) chame do que quiser, não é legal, assusta, é grave. É como estar na última fase do seu jogo preferido e saber que não pode dar reset e recomeçar na primeira fase, é como estar na tábua da beirada de um navio e lá em baixo o tubarão. Lidar com a morte todo dia, saber que pode ter uma embolia pulmonar e simplesmente deixar de existir, dá medo. As vezes eu tenho que chorar em silencio por causa disso, por que a sensação que dá é que ninguém vai entender realmente o que eu estou passando, que na verdade não é só um câncer, é a minha vida que eu estou agarrando, mesmo com câncer. Então, o câncer é meu, é um problema que eu agarrei com as minhas mãos e estou tentando resolver, embora seja plenamente amada por isso e apesar disso, e não tenho vergonha disso. E por ele estar dentro de mim, às vezes tudo se mistura. Perdi um amor, mas disso não vou falar, não sei quando, mas teve um dia que desisti, só desisti. Desistir dos cabelos. Não desisti, tenho que agradecer a Débora, mil vezes, por mil anos, por ter feito esse corte no estilo daquela garota Hanna Montana rebelde kkkk, qual é o nome dela? Nunca lembro, minha memória falha as vezes. Eu rezo pra não ser dramática, quero ser prática, mas as vezes eu caio nesse pecado do drama, e puxar seu cabelo e ver ele saindo na sua mão... não é legal. Eu achei que estava preparada pra isso, afinal, não estava. Eu chorei sozinha com um tufo de cabelos nas mãos por meia hora me imaginando feito um  “E.T.” com a cabeça lisa como um ... como o que? Eu não sei, não quis pensar muito, não quero pensar nisso, mas o cabelo, justo o cabelo que tá bem ali onde eu penso.. quase na minha cara. Então a gente tem que pensar que são coisas da vida, propósitos divinos e a nossa vida parada, e questionamentos surgem de todos os cantos da alma, e eles quase gritam: “Doente e careca, quem vai me querer?”,  “Vão me olhar com pena”, “Ou não vão nem olhar, vão evitar”, “Minha vida está parada e agora?”, “qual será o meu futuro”. Guarda isso, vou dizer a última coisa que mais me impactou e vou usar essa última questão só pra explicar por que não é necessário me desejarem mais força. Fazer tomografia, pet scan, exames de sangue toda semana, e os caramba, o procedimento mais simples de todos, envolve agulhas e meus braços e mãos, tenho marcas, e se eu não aguentar o tranco, bem, ultimamente eu choro. Chorar em publico não é comigo, sou do tipo que aguenta sorrindo, mas tem hora que não dá. Mas “tá de boa”. Quero falar da minha última quimioterapia, descer a serra de Petrópolis, entrar num hospital e sentar numa maca sabendo que vão furar seu braço e depois de tudo você ainda vai vomitar, não é legal. Dessa última vez me parece que vomitei minha alma. Fiquei até com medo de dar descarga e deixar minha coragem descer junto. Minha sensação essa semana quando minha mãe quis falar sobre a próxima quimioterapia, foi de náuseas. Eu escondi a bolsa, os sapatos e as roupas que usei naquele dia, por que parecia que eu estava sentindo o cheiro dos remédios e depois eu tive vontade de sumir por alguns minutos. No dia da quimioterapia eu fico mal, não dá pra andar, teve uma vez que vi as coisas em dobro, meu pai me segurava pra eu entrar no carro, e ele disse assim: “Põe seu pé dentro do carro filha!” e eu respondi rindo: “qual dos quatro?”, me pareceu engraçado. E bem, a medicação é forte, minhas veias dos braços doem, então é aí que eu penso: “Qual será meu futuro?”, é agora que você entende por que não precisa me desejar nada... Eu já tenho as minhas respostas, estou plena. Acredito que pelo menos uma vez na vida todos os seres humanos recebem a oportunidade de reconhecerem que são plenos e isso só acontece em dois casos, o primeiro, diante da vida e o segundo diante da morte. Eu recebi o dom da vida ao nascer dos meus pais (faço questão de ressaltá- los, tudo que eu sou vem deles, do dedão do meu pé até meu último fio de cabelo), usei esse tempo pra crescer e aprender muitas coisas, eu aproveitei tudo ao meu redor (dentro dos meus princípios, sem escrúpulos), e fui colocada plena diante da morte, mas eu fui (sou) tão amada, que na verdade não me importaria morrer, e a morte (embora me amedronte muito mais pelo desconhecido), eu acho que ela não suporta o amor, por que é o amor que tem me sustentado e acho que ela também não suporta as verdades de quando somos honestos (serei redundante e vou escrever errado srsrrs), “conosco mesmos”. E eu nem deveria ser tão pretensiosa, isso pra alguns deve ser até grosseiro da minha parte, mas bem... Estou plena em vida, descobri que todas as respostas que eu preciso pra hoje, eu já tenho, que tudo que eu sonhei, foi conquistado, que as pessoas que eu amo e que completam minha vida, já estão ao meu lado, e o futuro... É agora, meu futuro é a minha vida e a minha morte. E o câncer está indo embora dela, (segundo minha médica, Dra. Márcia, linda e simpática). Então, o medo na verdade é uma coragem, e devo apenas concluir que sou só uma pessoa com um sonho pra sonhar, e que se eu me misturar na multidão (que Deus me permita), nem vão perceber que na verdade eu sou uma trapaceira e enganei a morte.

Essa é a minha marca de superação.

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