23 de maio de 2015

Segunda- feira

Da série: [se você pudesse me ler]
(isso é só uma coisa que eu queria dizer, como tantas outras que os outros dizem, se você pudesse me ler...).
Eu estou me preparando psicologicamente pra segunda feira. O que eu posso dizer? Que odeio agulhas? Que vão picar meu braço pelos menos umas três vezes antes de achar a veia certa? Que não quero colocar um cateter? Não quero colocar um cateter, a médica disse pra mim da última vez: “Ainda estão conseguindo achar suas veias? Vai chegar uma hora que eles vão pedir pra colocar um cateter.”. A única coisa que eu pensei foi numa futilidade sem fim: “Não quero mais uma cicatriz.”. Egoísta não? Sou humana, não estou pronta pra lidar com isso. Não é romântico ser cortada e costurada, ou ficar com pontinhos roxos por causa de picadas. Alguém tem que dizer (de novo), pra Carolina Dieckmam, que cortar o cabelo não é a pior parte, eu tive que dizer isso pra mim mesma, a tia Ana também me disse. Por falar na Carol, foi divertido cortar o cabelo (agora que acabou), acho que estou pronta pra falar disso (só não estou pronta pra falar de amor). Minha tia Ana me contou os bastidores: “Quando a Débora estava lavando seu cabelo, ela me mostrou o quanto de cabelo estava caindo e eu fiquei assustada; depois que ela cortou e foi fazer a escova, eu pensei que seu cabelo ia cair muito.”. Eu disse que estava caindo, é que eu sou muito educada pra falar as coisas também, eu devia ter dito: “está caindo pra caral.*&%$!” , não, o que eu disse: “tá caindo, é que tenho mesmo muito cabelo, e não cai como nos filmes sabe, não sai um tufo inteiro de uma só parte da sua cabeça, sai fios da cabeça toda”. Bem antes de me sentar pra lavar o cabelo eu avisei: “olha, não repara não, é que está caindo muito.”. Ficou aquela coisa no ar, tipo “todo mundo sabe, filha, mas ninguém comenta.”. Ela lavou, eu fiquei calada quase o tempo todo, e rindo de nervoso, é da minha natureza. Fico só pensando nas coisas. Então me sentei na cadeira pra cortar. Era a hora, não podia voltar atrás. Deu vontade de dizer: “posso ir ali ao banheiro ter um ataque de pelanca? Já volto!? Não?”. Mas convenhamos, eu já estava ali, o cabelo caindo, ela com a tesoura, nada de mimimi (não por fora, por dentro eu estava gritando). Pra uma mulher, o cabelo é uma parte muito importante do corpo, é a moldura fundamental. Onde vou passar a mão quando eu ficar nervosa? O que vou prender quando eu tiver uma boa ideia, por que eu tenho essa mania..., em que vou passar a mão quando um cara bonito me paquerar, (como se isso fosse possível)? Foquei num ponto qualquer e coloquei a alma no automático, por dentro, pedi pra ser rápido. Ela cortou a primeira mecha. Me senti com 10 anos de novo. Voltei bem no dia que minha mãe cortou minha franja e eu não queria mais usar franja, por que já era uma mulher. Quis ter 10 anos de novo e quis minha franja (bizarra) de volta. Ela não demorou mais que 30 minutos cortando, e lá se foi meu cabelo (meu cabeloooo). A conversa se animou, esqueci meus medos e começamos a falar mal dos homens e de como são lindos e gostosos, (que é o que mulheres fazem em banheiros e salões de beleza, e falamos do Christian Grey), uma moça chegou deu boa noite e logo soltou a pérola do meu dia: “Nossa que moça linda, você é modelo!?”. Pensei por dentro: “ah, pára!”. Sorri, e fui cortez dizendo obrigada. Minha tia logo disse que não. Nossa beleza é uma coisa de família. Quando a Débora terminou o corte eu me olhei no espelho, acho que suspirei, vi meus lábios enormes e meus olhos enormes, e de novo aquela sensação de estar enfrentando uma coisa nova me invadiu, quem era aquela ali no reflexo do espelho? O que eu mais havia detestado nisso tudo era a minha cara de doença. Ali no espelho eu vi a mulher que eu gostaria de ser. Eu sempre digo (pra mim mesma e amigas), que antes de amar um homem você tem que ser a pessoa ideal pra você mesma, e ali eu me senti assim: a mulher da minha vida. Por que raios eu sempre tenho que ver o lado bom de tudo? Por que eu tenho que dar razão pra droga do pensamento positivo? É um talento que eu tenho (kkkkk), e muita prática em sempre ser a última da fila, aquela que sempre toma banho de poça d’água, é necessário muito bom humor pra lidar com as adversidades e por algum motivo no universo, eu sou a pessoa. Olha, tem gente que vê o câncer como um bicho papão enorme, e eu admito, tenho medo pra caramba, mas ele não me intimida, é difícil lidar com o fato de que somos uma bomba relógio caseira, mas são muitos anos trapaceando o azar, tirei meu diploma. Ah, o cabelo. O meu cabelo é mais um preço que estou pagando pra ficar boa, mas teve um dia que eu meio que olhei pro céu, já estava de noite, e já tinha estrelas (a culpa não é delas, já que tocamos no assunto), mas eu questionei sinceramente “por que eu”, disse pra Deus que ficar careca já era demais, afinal, eu já estou magra, disse que talvez era a hora em que ele deveria rever o roteiro do meu filme. Daí me veio na cabeça o que Rumi escreveu: “Eu irei oferecer meu coração para aquele que está doente da mesma doença. Os doentes podem beber a mim como se eu fosse um elixir.” O meu cabelo é preço pequeno diante disso, se eu ainda puder sorrir ou escrever. Eu não encaro o câncer como o fim da minha vida, de qualquer forma, por que não sou que decido sobre a vida e a morte. Tem uma coisa que eu estou tentando dizer, é que, eu também não estou preparada pra fazer quimioterapia, mas estou lá de quinze em quinze dias, sorrindo. Quando a enfermeira não acha minhas veias, eu não reclamo, ela pede desculpas, acaricia minha mão e viramos boas amigas. Não é só vocês que se compadecem, eu queria muito dizer isso pra minha família, as vezes vejo que carregam esse fardo sozinhos, especialmente minha mãe e a tia Ana, dá pra ver nos olhos sabe, as pessoas ficam querendo tirar minha dor, infelizmente, e acho que elas também pensam assim, não é algo que passe com mertiolate (é assim que escreve?). As vezes nós, os doentes, também entramos numa onda de autocompaixão (acho que isso pode ser um tanto óbvio, ninguém é de ferro), tem dias que eu nem quero lembrar que estou doente, por que sou vaidosa, egoísta e por que eu sou um pouco fútil também. Minha preparação psicológica inclui meu remedinho de enjoo, sou chatinha quando fico enjoada, não gosto que me toquem, não quero que me vejam vomitando e sim, se eu puder, após vomitar eu retoco minha maquiagem, por que não estou pronta pra me olhar no espelho e  ver qualquer pontinha que indique que eu possa vir a fracassar. É uma coisa que todo meu ser faz em conjunto. Um equilíbrio total entre mente, coração, alma, espírito e estômago e/ ou fígado. E cortar o cabelo mexia com esse equilíbrio, agora eu acho que não mexe mais. Fazer “quimio” ainda mexe com esse equilíbrio, e tudo que penso é em não desequilibrar quem me carrega quando eu fico mal depois da sessão, é uma arte, eu concluí que viver é uma arte. E Rumi tem a completa razão.
“Seja como o sol pela graça e misericórdia
Seja como a noite para cobrir as faltas dos outros
Seja como a água corrente pela generosidade
Seja como a morte para a raiva e o ódio
Seja como a terra pela modéstia
Pareça ser aquilo que você é

Seja aquilo que você parece ser.” (Rumi, poeta sufi)

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